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Cacau Rhoden: “escola boa é escola onde as pessoas têm paixão”

Cacau Rhoden: “escola boa é escola onde as pessoas têm paixão”

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Por Fernanda Peixoto Miranda

Aos quinze anos, o curitibano Cacau Rhoden se deu conta de seu forte desejo de trabalhar com cinema. A ideia veio após assistir, pela primeira vez em sua vida, a uma sessão numa grande tela. Estamos no início dos anos 90, na rua XV de Novembro, na região central da capital paranaense. À época, Rhoden, que é filho de imigrantes, trabalhava como office boy para ajudar em casa. “Estava andando nessa rua, que é um calçadão, e vi um cartaz lindo na porta de um cinema de rua. Como eu já estava ganhando uma graninha, comprei um ingresso.” O filme que estava em cartaz? “Sonhos”, do cineasta japonês Akira Kurosawa. A obra, de 1990, é composta por oito histórias, que refletem sobre temas como perda, morte e a vida em sociedade. “Saí do cinema falando que era aquilo que eu queria fazer pelo resto da minha vida. Fiquei deslumbrado. ‘Sonhos’ é uma pintura, uma coisa absurda”, lembra. 

Décadas depois, Rhoden se vê no lugar que desejava. Como diretor, ele já esteve à frente de filmes que somam uma audiência de centenas de milhares de espectadores, como Tarja Branca (2014), Nunca Me Sonharam (2017) e Corações e mentes, escolas que transformam (2018), produzidos pela Maria Farinha Filmes e disponíveis para exibição pública na plataforma Videocamp. O último, inspirado na comunidade das Escolas Transformadoras, é uma série que narra a história de oito escolas brasileiras que abriram espaços para novas formas de educar. Por meio de suas produções cinematográficas, o diretor busca contar boas histórias, que são um convite para que a sociedade reflita e ressignifique temas da humanidade que dizem respeito a todos nós, como explica nesta entrevista.

Escolas Transformadoras: Tarja Branca, um de seus filmes mais conhecidos, fala sobre o espírito brincante que habita nas crianças, nos jovens e nos adultos. Por que você decidiu fazer um filme sobre o brincar?

Cacau Rhoden: Fui apresentado à produtora Maria Farinha Filmes em 2012. Nessa época, recebi uma proposta dos produtores Marcos Nisti e Estela Renner para fazer um filme sobre brincantes que pesquisam e elaboram manifestações artísticas e culturais no país. Eu não tinha muita conexão com manifestações culturais de tradição, então comecei a investigar isso. Eu queria saber: o que significa ser brincante? Por que essas pessoas se intitulam brincantes? Por que elas brincam? E, afinal, o que é brincar, será que eu sei? O filme era pra ter, inicialmente, 20 minutos, mas no processo descobri outras coisas que se tornaram algo muito maior, que é o Tarja Branca. Um filme sobre um espírito lúdico que todos nós temos e que o sistema fez com que, ao ficarmos adultos, abandonássemos. O filme ganhou prêmio no Festival de Toronto e ficou onze semanas em cartaz nos cinemas, o que é um sucesso imenso para um documentário.

ETB: O seu primeiro documentário sobre educação, o Nunca Me Sonharam, apresenta experiências de educação pública no país. Quais foram seus principais desafios ao fazer essa obra?

Cacau: O desafio era tornar os tema da educação e da gestão escolar mais sexy, mais atraente. Naquele momento, estavam acontecendo as ocupações dos secundaristas. Por ironia do destino, tentei filmar as ocupações, mas, em todo lugar que eu chegava, desocupavam as escolas. De todo modo, todas as questões relacionadas às ocupações estão no filme, só que de uma outra forma. Assim como as ocupações, o filme fala sobre o desejo, a vontade, a luta e a identidade das juventudes brasileiras. 

Acima, o teaser de um dos episódios da série ‘Corações e mentes, escolas que transformam’. Acesse aqui para assistir.

ETB: Como foi sua experiência escolar na juventude? Voltar em ambientes educacionais na fase adulta, para gravar filmes, mudou sua percepção sobre a escola?

Cacau: Estudei em escola pública do fundamental ao ensino médio. Eu tinha horror à escola. No ensino médio eu até que gostava um pouco porque lá eu conseguia levar minha guitarra pra tocar no anfiteatro da escola. Eu passava mais tempo tocando do que na sala de aula. Pra mim, escola era prisão, me sentia dentro de um caixote. Quando voltei para a escola, para a gravação do Nunca Me Sonharam, confesso que me senti desafiado. Esteticamente seria difícil fazer um filme bonito. As escolas são feias, apertadas, a luz é feia. Por isso, o que a gente fez foi colocar um olhar poético em cima do educador e do estudante que ocupam as escolas. 

Fica claro nesse filme que educação é feita por gente. Pra mim, o filme espelha tudo de ruim que impacta a escola pública e que vem de fora dos muros da escola, que é a miséria, a violência, drogas, e o quanto a escola pode transformar a sociedade. Ou seja, existem problemas, mas também existem caminhos para solucioná-los. O filme mostra, principalmente, o material humano nesse país que é de uma riqueza gigantesca. Escola boa é escola onde as pessoas têm paixão, vontade e acreditam na transformação positiva do país. 

ETB: E como foi a sua entrada no mundo audiovisual? 

Cacau: Na minha infância, eu nunca pisei em uma sala de cinema. Meus pais não tinham a cultura de ir ao cinema. Sou fruto de uma geração que viu muita televisão. As pessoas veem até hoje, naturalmente, mas era o que tinha na época, a TV aberta. Basicamente minha cultura cinematográfica na infância foram os filmes da Sessão da Tarde, como os de Elvis Presley. A programação era muito mais interessante do que a de hoje, lembro de assistir filmes antigos de Hitchcock na TV e tal. Comecei a trabalhar muito cedo para ajudar em casa. Venho de uma família de imigrantes, dos dois lados, de pessoas simples. Um dia, trabalhando como office boy, eu estava passando na rua XV de Novembro e vi um cartaz lindo na porta de um cinema. Como eu já estava ganhando uma graninha, eu falei, “ah, vou ver o filme.” Entrei no cinema e saí dele falando pra mim que era aquilo que eu tinha que fazer da minha vida. Fiquei tão deslumbrado, tão encantado. Era a estreia de um filme do Akira Kurosawa que chama “Sonhos”, que é uma pintura, uma coisa absurda. Sai muito encantado.

Três meses depois consegui estagiar em uma produtora. Eu servia café, enrolava cabo. Estagiei por um ano de graça e daí virei assistente de produção. Fui crescendo na profissão muito rapidamente. Com 20 anos, me tornei diretor de produção, depois migrei para o departamento de direção, e ali fiquei muitos anos. Quando fiz 24 anos fui para São Paulo. Minha escola foi muito boa. 

Acima, o teaser de um dos episódios da série ‘Corações e mentes, escolas que transformam’. Acesse aqui para assistir.

ETB: Você dirigiu dois documentários sobre educação, o Nunca Me Sonharam e o Corações e mentes, escolas que transformam. Quais são as intersecções e possíveis conversas entre os dois filmes?

Cacau: Acredito que ambos propõem que as pessoas reflitam sobre o papel da educação, e se a educação que está aí, que é oferecida em grande escala, faz sentido no mundo de hoje. Eu acho que não. Fica muito evidente que escolas que se reinventaram e se transformaram têm resultados muito mais positivos no sentido de formar seres humanos autônomos, plenos, inteiros, atuantes e protagonistas de suas vidas.

ETB: Você acha que as pessoas ainda veem a educação como um assunto chato? Como mudar essa visão?

Cacau: É um assunto chato porque a escola é chata. Simples assim. Por isso nós precisamos quebrar esse paradigma. Escola não pode ser chata. Os filmes que dirigi, por exemplo, mostram experiências incríveis, de escolas absolutamente vivas. Eu, como cineasta, me considero um contador de histórias. O que fiz foi procurar histórias pra contar, mostrar que temos histórias muito interessantes no ambiente escolar. E educação não é uma coisa que acontece só dentro da escola. Ela está acontecendo agora, nesta entrevista, na comunidade, no mundo, o tempo todo. É só uma questão de as pessoas entenderem que é algo mais interessante do que imaginam. Educação tem a ver com a magia do conhecimento, é algo que transforma a nossa existência. Se ligam a escola a uma coisa desinteressante, é porque a escola foi, por muito tempo, desinteressante. E, em alguns casos, continua sendo. As escolas precisam se transformar. Se não for assim, elas serão, para sempre, desinteressantes. 

ETB: Durante as filmagens de Corações e mentes, escolas que transformam, você conheceu muitas realidades e escolas diferentes. Você visitou, como o título da série sugere, “escolas que transformam”. Após essa experiência, como você acha que uma escola pode ser transformadora? O que é importante para que uma escola seja transformadora?

Cacau: Essas escolas mostram que existem inúmeras maneiras de transformar, de ser e de estar no mundo. A série mostra escolas públicas, particulares, de educação infantil à educação de jovens e adultos, das cinco regiões do Brasil. São escolas que respeitam a cultura de um povo, de um grupo humano de um determinado lugar, que tem relações fortes com sua comunidade. Vejo que essa diversidade é uma das coisas mais ricas no Brasil. Quando tentam padronizar tudo, a gente está destruindo o que temos de mais bonito. 

Conheci estudantes encantadores. As crianças são encantadoras, e é inegável a potência da fala delas. Os adultos precisam prestar muito mais atenção na percepção de mundo das crianças.

Corações e mentes, escolas que transformam está disponível para exibições públicas e gratuitas no Videocamp. Todos os episódios têm recursos de acessibilidade (audiodescrição, Libras e closed caption) e legendas em inglês e espanhol. Clique aqui e organize sua exibição

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