Escola sem partido, educação sem sentido
Por Raquel Franzim
Foto: Colégio Viver – Escola Transformadora de Cotia, SP
Para muitos, 2016 foi o ano que não queria terminar. Para todos nós, defensores de uma escola livre, de fato ele não terminou. Somente em fevereiro o Projeto de Lei 7180/14, mais conhecido como Escola sem Partido, voltou a ser duas vezes tema de audiência pública na Câmara dos Deputados.
O projeto – de autoria do deputado Erivelton Santana (PSC-BA) – desde 2014 aproveita-se do acirramento da complexa e conflituosa conjuntura política para disseminar na sociedade brasileira a ideia de que escola é lugar apenas para se aprender o beaba.
Invocando o respeito às convicções dos alunos e suas famílias e centralizando na família a educação de valores morais, sexuais e religiosos, o Escola sem partido não quer apenas alterar o artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, (também por meio de medida provisória). Ele busca, sobretudo, acabar com o sentido maior de escola que seria, segundo a Lei da Educação, “lugar de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”; de “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Habilmente, o projeto centra o debate na ideia de que seriam as escolas e seus educadores um espaço de pressão político-partidária sob passivos e ingênuos estudantes, além de alegar que valores são imutáveis e que o ensinamento recebido em casa é absoluto.
Caro (a) leitor(a), acredite, se tens filho ou aluno em idade escolar ele não estará protegido em uma “Escola sem partido”.
Primeiro, porque crianças e jovens são ativos, curiosos e cada vez mais antenados a diferentes fontes e perspectivas de conhecimento. O Projeto de Lei claramente ignora o protagonismo de estudantes de todo o Brasil, o qual revelou-se potente nas mobilizações que se iniciaram em 2013 e seguiram com as ocupações de escolas recentemente. O PL também ignora a capacidade de engajamento de crianças e jovens frente aos tantos dilemas individuais e coletivos e suas iniciativas e capacidade de tentar resolvê-los.
Segundo, porque censurar o debate e a reflexão sobre práticas sociais e cidadãs é uma grave violação do direito de aprendizagem de crianças e jovens no que tange a leitura de mundo, o desenvolvimento do pensamento crítico e livre e a possibilidade de estabelecer relações saudáveis com diferentes pessoas e opiniões divergentes.
Fazem coro a esse argumento, inúmeros estudantes do Brasil. Max, que está no 9º ano do Ensino Fundamental do Colégio Viver, em Cotia, uma das escolas que integram o Programa Escolas Transformadoras, relata: “Eu acho que prejudica bastante o ensino e cada aluno, prejudica a possibilidade que ele tem para expressar sua opinião. Eu, como sou uma pessoa meio ligada em política, não conseguiria falar de política na escola, não conseguiria tirar dúvidas, discutir e tirar minhas conclusões. Não que a opinião de uma pessoa vai influenciar totalmente a minha, mas ela contribui para eu formar a minha”.
Imagine, em longo prazo, um mercado de trabalho formado por pessoas tolhidas de seu direito de pensar criticamente? Ou mais, uma sociedade impedida de se relacionar empaticamente com a diferença de opinião, credo, orientação sexual?
Infelizmente, manifestações de intolerância com as diferenças, ausência de participação crítica e cidadã no dia a dia das cidades e uma intensa escalada do ódio e de “muros” (concretos e simbólicos) já se enxerga por aí.
Maria Amélia Cupertino, uma das diretoras do Colégio Viver esclarece: “Doutrinar implica em apresentar um só caminho, exigir (não sei como) que todos pensem da mesma forma. Portanto, se esse Projeto de Lei fosse desenhado apenas para afastar atitudes realmente doutrinárias, eu diria que não haveria nenhuma mudança no nosso jeito de trabalhar. Pois o diálogo, que é a base de nossas reflexões, permite que aflorem diferentes pontos de vista, dos quais um é o do professor, o qual não é visto pelos alunos como detentor absoluto de uma verdade. Não ser doutrinário, entretanto, é diferente de ser neutro. Não existe neutralidade na educação, a escola tem alguns valores e premissas que norteiam suas escolhas no que diz respeito do currículo, das dinâmicas, da própria seleção de professores”.
Se não for a escola o lugar do encontro com o diferente, da possibilidade de se alargar os horizontes sociais, científicos, humanos, onde será? A família sozinha, apartada do mundo, garante toda a educação para a vida de crianças e jovens?
Maria Amélia comenta que a visão de família que se tem no PL também é equivocada: “Temos feito várias rodas de conversa com os pais sobre esses temas, tais como a influência da tecnologia, o entendimento de autonomia, as relações de gênero, a inclusão, o preconceito. Para mim, a própria aprovação por parte das famílias dessas conversas mostram que elas também não acreditam em criar seus filhos em uma bolha. E as discussões são ricas porque nosso público não é nada homogêneo, temos famílias bastante tradicionais e outras muito alternativas”.
Retirar da escola sua finalidade máxima de apoiar crianças e jovens a aprender e se desenvolver em liberdade e com protagonismo é uma afronta ao valores humanos (artigo 18º e 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos); à valorização da profissão docente e ao exercício da profissão e às culturas de escolas e comunidades que mobilizam a todos no enfrentamento de suas duras e desiguais realidades. É o esvaziamento do sentido da educação. É o pior partido que podemos tomar.
Diz o ditado “há males que vem para o bem”. Acredito que o Escola sem partido é um desses. Graças a esse questionável (e perigoso) projeto, temos a oportunidade de mostrar que é necessário mudar a conversa sobre educação e que acreditamos que a força da escola está em tomar partido do debate, não o debate partidário, mas o debate sobre a vida que afeta todos nós.