“Uma escola que se abre à participação do outro nunca está terminada”
“Nunca estaremos prontos”, afirma Anna Maria de Castro, fundadora do Colégio Viver. Para ela, a educação deve ser viva e dinâmica, dialogar com diferentes atores e se abrir para novas possibilidades.
Por Carolina Prestes / Escolas Transformadoras
Foto: Colégio Viver – Escola Transformadora de São Paulo
A estrada que leva ao Colégio Viver, localizado em Cotia (SP), já provoca encantamento e dá pistas sobre o que virá pela frente. Uma vasta área verde, caminho de terra, céu imenso, longe dos colossais edifícios da cidade. Esse é o cenário que acolhe o Viver, fundado em 1977 pela educadora Anna Maria de Castro.
Ao chegarmos à escola, a comissão de visitas estava pronta para nos receber. Formada por alunos de diferentes anos, a comissão tem atuado com afinco, já que as visitas de pesquisadores, empresários, educadores e empreendedores são frequentes. Todos em busca de conhecer de perto o modelo de educação desenvolvido ali. Mas, o que o difere dos outros?
Em 1977, com a fundação da unidade de Educação Infantil, Anna Maria concretizou o sonho de criar um espaço de liberdade e autonomia para crianças. A educadora transformou a fazenda de sua família, em Cotia, em uma escola. Em um amplo espaço verde, ela construiu um ambiente que valoriza o brincar livre e proporciona tempo e espaço para que as crianças descubram seus interesses e explorem suas curiosidades. “Sempre acreditei que a criança não aprende apenas na sala de aula, mas em diversos ambientes”, afirma Anna Maria, que trabalhou com o mestre Paulo Freire e, assim como ele, acredita no protagonismo e na autonomia como pilares centrais da educação.
Estes valores, que sempre acompanharam a unidade de Educação Infantil – hoje carinhosamente chamada ‘Viverzinho’ – consolidaram-se como espinha dorsal da Unidade de Ensino Fundamental, fundada em 1998, e hoje conhecida como ‘Viver’.
Para abrir o Fundamental, Anna Maria chamou a educadora Maria Amélia Cupertino e, juntas, as duas deram início à empreitada: “A escola demorou a estruturar-se. A cada ano aumentávamos uma série. Estávamos experimentando, não existia modelo do que queríamos fazer”, afirma Anna Maria e, de fato, a proposta era inovadora, pois sugeria um trabalho que priorizava a autonomia dos alunos, além da ideia de misturar faixas etárias, prática que hoje é uma realidade em diversas ocasiões, como nas aulas de artes e humanidades, nas tutorias, nas disciplinas eletivas ou nos momentos de assembleia, em que alunos reúnem-se para discutir problemas e mudanças da escola ou para resolver conflitos.
Beatriz, aluna do 6º ano, diz gostar da possibilidade de aprender com alunos de anos diferentes: “Acho que dá força para as pessoas se falarem mais e socializarem. Se não tivesse a tutoria, ou a assembleia, ou alguma coisa que juntasse os anos, eu, por exemplo, não estaria falando nem com o 8º nem com o 9º ano. Eu ganhei muito mais amigos, e se eu tiver alguma dúvida, posso pedir ajuda para as pessoas com um pouco mais de conhecimento do que eu, caso eu não queira tirar com os professores”.
Ao longo destes 18 anos, tais fazeres se consolidaram e, hoje, constituem a identidade da escola e de seu projeto pedagógico.
Maria Amélia não nega que a opção de trabalhar com a proposta dos projetos pessoais é desafiadora, mas garante que o trabalho traz inúmeros benefícios aos alunos e aos professores: “A ideia era bem ousada. E surgiam projetos de temas que você nem pode imaginar. As crianças acreditam que tudo é possível, e isso leva a questionamentos ricos e a processos de investigação profundos”, garante a educadora.
Hoje, para os anos iniciais do fundamental, os alunos recebem uma lista de temas e fazem suas escolhas a partir dessa pré-seleção realizada pelos professores. Já nos anos finais, a escolha é livre, mas precisa ser alinhada com os professores orientadores, que acompanham o desenvolvimento dos projetos. Como os projetos são pessoais, a diversidade de temas é grande. Há alunos pesquisando sobre música, paleontologia, fotografia, gênero, etc.
“Quando o tema proposto é muito ousado, vamos atrás do conhecimento que não temos. Buscamos fontes de pesquisa, ajuda da comunidade, e damos todo o suporte para o aluno realizar a sua pesquisa e concluir o seu projeto pessoal”, afirma Anna Maria, certa de que esse espaço é fundamental para o desenvolvimento do protagonismo e da autonomia dos estudantes.
Em alguns projetos, os próprios pais se envolvem. “Já pedimos a ajuda de uma mãe arquiteta e de um pai engenheiro para construir uma pirâmide em tamanho real” lembra Anna Maria, orgulhosa da persistência dos alunos em concretizar aquilo que imaginam.
Além de contribuírem com os projetos – levando seus saberes – os pais também dão eletivas, participam de rodas de discussão sobre temas variados e
engajam-se em atividades cotidianas da escola: “Outro dia uma mãe decidiu organizar toda a biblioteca. Ela puxou a ideia e os alunos ajudaram”, exemplificou Anna Maria.
Francisco está no 8º ano e diz gostar muito das oficinas eletivas, pois entende que elas abrem as possibilidades dos temas a serem trabalhados: “Para as disciplinas eletivas, todo trimestre a escola chama pessoas de fora, ou até mesmo professores da escola para dar uma disciplina diferente. É tipo cursos. Aí cada aluno se inscreve nos cursos por interesse. Tem de tudo: dança, história em quadrinhos, astronomia, francês. Alunos do 6º ao 9º são misturados. Se a turma ficar muito cheia, tem sorteio.”
Maria Amélia confirma que a Escola preza por garantir tal diversidade: “Se não oferecermos atividades com o corpo alguém pode não se achar no mundo – por isso o equilíbrio entre os conteúdos e temas”.
Para dar suporte ao trabalho em comunidade, garantir a diversidade e ampliar as possibilidades de atuação, Maria Amélia e Anna Maria fundaram a ONG Conviver, que tem como grandes objetivos angariar fundos para suprir as bolsas (hoje 20% dos alunos são bolsistas), suprir o trabalho de inclusão e promover encontros de trocas com escolas públicas, além de um trabalho de sistematização das práticas educativas da escola. Entre os membros que tocam a ONG, estão muitos pais da escola.
As diretoras afirmam que ainda existe um desafio em mostrar aos pais que é possível romper com os modelos engessados de educação: “Muitos pais acham que as crianças só aprendem se fizerem prova. Precisamos discutir sobre novos modelos de educação”. No Viver, o sistema de avaliação não é baseado em provas ou notas, mas em avaliações que ocorrem de forma compartilhada e processual. Cada aluno mantém um portfólio e, junto com seu professor tutor, olha para os pontos que precisam ser melhorados e conquistados. Assim, o próprio aluno reconhece suas habilidades e dificuldades, dando significado ao processo de aprendizagem.
Laura entrou no Viver no 6º ano. Há dois anos na Escola, ela diz com bastante convicção que a troca foi positiva: “Eu mudei pra cá no sexto ano e senti muita diferença. A liberdade daqui. Aqui nós temos voz. O jeito que a gente convive com os professores… Não são aqueles professores que ficam lá na frente só falando. Aqui as pessoas conversam; você tem certa intimidade com o professor”.
A preocupação da escola em estar ‘além-muros’ e integrar outros saberes ao currículo também se manifesta na integração do Viver com diversas redes, como a Rede Educação Democrática, Rede de Escolas Transformadoras, Conane, entre outras. Além dessa articulação, em que dialoga com outros atores, existe também uma aproximação com escolas públicas.
Ao longo de dois anos, a Viver participou de um Projeto de integração entre escolas particulares e públicas e Anna Maria afirma que esse modelo era o que ela gostaria de ver como prática permanente na escola.
O Projeto, que levou o nome ‘Eu e os outros’, abriu o olhar de todos. Os estereótipos e preconceitos existiam dos dois lados e a ideia do projeto foi quebrar essas ideias pré-estabelecidas, colocando os alunos das diferentes escolas em contato e mostrando os vínculos que existia ente eles. As diretoras afirmam que a experiência foi muito rica, trazendo vivências e trocas construtivas a todos os envolvidos.
Neste ano o Viver está novamente se aproximando das Escolas Públicas, em um Projeto que envolve outras instituições, como o Âncora, que também fica em Cotia. “Nessas experiências constituímos muitas coisas interessantes – cada escola tem um jeito de trabalhar o protagonismo social, por exemplo, e essa diversidade de olhares fortalece as mudanças que estamos empreendendo”, comenta Maria Amélia.
Para uma escola que está aberta ao diálogo e às mudanças, espaços de troca são fundamentais. “A escola é viva”, diz Maria Amélia. “Nós acreditamos nos alunos, na equipe e na comunidade e, assim, vamos resolvendo nossos conflitos”, afirma a diretora.
Desta relação de confiança e afeto, bons frutos nascem. “Vamos além do pedagógico e do intelectual, também buscamos amparar o emocional dos alunos e, para isso, buscamos uma equipe que tenha um olhar bonito para as crianças e para os jovens e que entenda a importância da participação de todos”, diz Maria Amélia, afirmando que a escola também tem um lugar que é afetivo e que propicia a construção de relações amorosas e empáticas.
“Nossos professores são extremamente capacitados intelectualmente, mas se não tiverem essa qualidade de olhar para o outro, não dá certo”, diz Maria Amélia. Na escola os professores são vistos pelos alunos como amigos e Anna Maria acredita que isso se dê pelos canais de escuta que os educadores abrem às crianças.
Muitos alunos, ao saírem da escola, retornam. Seja como funcionários, ou em momentos de celebração, como as festas juninas e a festa dos 18 anos do Colégio, que ocorreu em junho deste ano. “Existe essa sensação de pertencimento, que não acaba”, diz Anna Maria. E ao serem questionadas sobre a adaptação dos alunos quando saem da escola, as diretoras são certeiras: “Nunca tivemos problemas quanto a isso. Muito pelo contrário, eles saem daqui seguros de si, atuantes, engajados, participam de movimentos políticos, Centro Acadêmico, ações sociais. São críticos, sabem se colocar” e também pontuam que o encanto pelo conhecimento é unanimidade entre os alunos, resultado da proposta do aprendizado com significado, que vem desde o Viverzinho.
“As pessoas acham que temos um manual a ser seguido. Não é assim. A escola esta constantemente mudando. Um ano é diferente do outro! Não estamos prontos e, se Deus quiser, nunca estaremos. O processo é constante e exige vigilância”, finaliza Anna Maria e, afinada com a parceira de estrada, Maria Amélia, complementa “Uma escola que se abre à participação do outro nunca está ‘terminada’. Priorizamos um conjunto de pessoas que vão ter voz e levamos a sério”.
*Foram entrevistadas para essa matéria Anna Maria de Castro, fundadora e diretora do Colégio Viver, e Maria Amélia Cupertino, co-fundadora do Ensino Fundamental do Colégio e diretora. Conduziram a entrevista Carolina Prestes, Mariana Prado e Natália Bastos, do Programa Escolas Transformadoras.