“Educação integral é um projeto de sociedade”
Nos dias 12 e 13 de dezembro, o 3º Seminário Internacional de Educação Integral – SIEI – debateu o direito à educação integral no país
Por Fernanda Peixoto e William Nunes
A discussão sobre o conceito e a garantia à prática da “educação integral” está ganhando força e visibilidade no país. Seu entendimento como um “projeto de sociedade” tem sido defendido por educadores, sociólogos, famílias e outras pessoas que entendem que a educação deve garantir o desenvolvimento intelectual, físico, social, emocional e cultural dos sujeitos.
Para dialogar sobre esse tema, o “3º Seminário Internacional de Educação Integral” reuniu, entre os dias 12 e 13 de dezembro, jovens, educadores e especialistas no Sesc Pompeia, em São Paulo, em rodas de conversa, palestras e práticas realizadas em uma escola na região.
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Na mesa que inaugurou o seminário, jovens foram convidados a compartilhar suas experiências no ambiente educacional, contextualizando seus desafios diante de uma sociedade desigual como a brasileira. Afinal, como enfrentar uma sociedade que tenta impedir a potência da juventude?
Um dos convidados, o escritor e educador André Gravatá, expôs sua leitura de como o país enxerga a juventude. Para ele, o jovem não é reconhecido como alguém que tem voz e, portanto, suas ideias e interpretações do mundo ainda são amplamente ignorados. Para exemplificar, ele relatou uma experiência que teve recentemente com o Criativos da Escola, programa do qual faz parte e que encoraja crianças e jovens a transformarem suas realidades. Em conversa com adolescentes que foram premiados pelo projeto, estes relataram surpresa com o fato de estarem sendo ouvidos e reconhecidos como protagonistas de suas próprias histórias. “Se quisermos mudar a educação, a valorização dos jovens tem que necessariamente acontecer”, afirmou.
Primeiro de sua família a ingressar na universidade, Gravatá pontuou que, para a discussão sobre educação avançar com qualidade, é preciso também considerar a desigualdade social tão crítica no país. “A meritocracia é uma farsa inventada para que a sociedade continue reproduzindo a relação hierárquica de poder e, consequentemente, a desigualdade.”
O olhar crítico à desigualdade social também esteve presente na fala de Daniel Remilik, do Redes da Maré. No debate, ele contou sobre como foi sua vivência escolar no bairro da Maré, no Rio de Janeiro, onde, por conta da violência, os estudantes chegam a perder conteúdo e anos de estudo. “Quando os jovens desse bairro chegam ao vestibular, estão com anos de atraso em relação a outros estudantes que não passaram por isso.” Por esse motivo, a desigualdade e a educação não podem ser dissociadas.
Thabata Letícia da Silva, educadora do programa Jovens Urbanos, argumentou que também é necessário reconhecer o lugar em que a sociedade coloca os jovens. O racismo e o machismo, por exemplo, são realidades ainda não superadas que afetam diretamente a juventude, bem como outras fases da vida. “Temos que assumir nossas contradições para pensar em educação integral.” Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM, complementou: “Educação integral passa, necessariamente, em deslocar os tradicionais locutores e abrir espaço para pessoas que tiveram poucas oportunidades”.
O painel “Práticas de Educação Integral” colocou em debate experiências de escolas e organizações que trabalham em uma perspectiva integral de educação. Ana Bocchini, do Coletivo Escola Família Amazonas (CEFA), trouxe a experiência deste movimento social que apoia hoje três escolas em Manaus (AM), incluindo a Escola Municipal Professor Waldir Garcia.
Quais são os projetos político-pedagógicos das escolas localizadas em Manaus? De que adianta querer transformar a sociedade se a atuação for direcionada exclusivamente aos próprios filhos? A partir dessas indagações, e incomodados com a realidade educacional na região, um grupo de mães e pais deu vida ao CEFA. Por meio de seminários, conversas com gestores e visitas às escolas da cidade, esse grupo começou a debater os modelos possíveis de educação. “Apostamos na escola pública como caminho para uma educação democrática”, explicou Ana. Hoje, o movimento continua se fortalecendo e atuando em várias frentes, com foco na luta pelo direito de todos à educação pública.
Dando continuidade ao debate, a diretora da Escola Municipal Professor Paulo Freire, Socorro Lages, falou sobre como a integração entre bairro e escola é fundamental para o desenvolvimento de ambos. A educadora abordou quais são os desafios e o dia a dia da escola, situada em Ribeiro de Abreu, um bairro de alta vulnerabilidade social e com quase 15 mil habitantes em Belo Horizonte (MG). “Como pensar em educação integrada em um local onde não há assistência política, tampouco parques, praças, ruas asfaltadas?”, questionou.
Diante disso, Lages não desanimou, pois, como afirmou mais adiante, “todo educador deve se vestir de coragem”. A escola, então, teve a determinação de se apropriar e transformar os espaços públicos e culturais do entorno. Por meio da valorização da arte e da cultura local, e em parceria com universidades e órgãos públicos, a escola é, atualmente, um espaço de articulação na comunidade. “Me comove ver o protagonismo dos estudantes e dos moradores da região”, finalizou. “Muitos saem para terminar os estudos e depois voltam para trabalhar e transformar a vida de outras crianças e adolescentes, assim como eles foram transformados”.
A abertura do segundo dia de seminário contou com a presença de Catherine L’Ecuyer, advogada, pesquisadora e autora do livro “Educar na Curiosidade”. Para ela, “a crise na educação é uma crise de atenção”. A pesquisadora acredita que a atenção legítima é uma atitude espontânea das crianças, na qual elas se tornam ativamente interessadas em tudo aquilo que estimule sua curiosidade. Nesse processo, Catherine destacou a importância de educarmos a partir de coisas que deem sentido e significado à vida das crianças e também a partir do brincar livre e desestruturado.
Quando questionada sobre as novas tecnologias e o bombardeio de informações que os mais jovens recebem hoje em dia, Catherine respondeu que a melhor preparação para o mundo digital é o mundo real. “Creio que a tecnologia pode ser bem utilizada em uma mente com capacidade para filtrar informações”, disse a educadora. Ela também explicou que esse bombardeio causa uma sensação de multitarefas, que pode ser prejudicial para o foco das crianças em qualquer atividade.
A segunda mesa do dia debateu “O papel das políticas públicas na garantia do direito à Educação Integral”, dando destaque à importância do Plano Nacional de Educação (PNE).
Macaé Evaristo, secretária de Educação do Estado de Minas Gerais, foi quem tomou a palavra inicial: “Debater educação integral passa pela questão de qual sociedade nós queremos. O direito à educação pressupõe um pacto social”. Para ela, o quadro atual das políticas públicas é de desmantelamento das metas do PNE, e isso tem se agravado com a aprovação da EC 95, emenda que estabelece um teto de gastos para a educação no Brasil. Em consonância com a voz de Macaé, Maria Rehder, coordenadora de projetos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, levantou que uma das formas de desmantelamento do PNE também é o enfraquecimento dos fóruns de decisão e participação da sociedade civil, como a Conferência Nacional de Educação (CONAE).
Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), pontuou que ter recursos financeiros é imprescindível em um país onde a educação ainda é excludente. Além disso, atentou para o fato de que o diálogo sobre políticas públicas chega muito pouco ao chão da escola. “Essa discussão sobre legislação é muito árdua e nos familiarizamos pouco com ela. Quando falamos em educação integral, acho importante pensarmos também na dimensão política. Todo regime de retirada de democracia é acompanhado de reformas educacionais”, afirmou a presidente.
Para fechar a mesa, Chico Soares, do Conselho Nacional de Educação (CNE), falou sobre a importância do monitoramento dos resultados do sistema educacional, em meio à tramitação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Além da conclusão dos ciclos, dados de desigualdade, eficácia e relevância também devem ser levadas em conta. “Queremos saber se os significados que aprendemos têm relevância para a vida. Temos nos perguntado pouco sobre isso”.
Apesar de encontrarem um cenário pessimista, todos os convidados parafrasearam Paulo Freire e relembraram que, para educar, é preciso esperança.
A mesa “Educação de Alma Brasileira: Educação Integral e a construção da democracia” encerrou o seminário com um grande espírito motivador. Pegando o gancho do lançamento do novo livro “Educação de Alma Brasileira” (que pode ser baixado clicando aqui), apoiado pela Fundação SM, Fundação Itaú Social e Instituto C&A, a roda se debruçou sobre o que é exatamente uma educação de alma brasileira e qual é a educação que nós queremos.
Helena Singer, líder da Estratégia de Juventude América Latina na Ashoka, explica que o projeto de educação no Brasil é visto como falho, porque o modelo aplicado aqui veio de países do norte do mundo e, portanto, não foi pensado para o contexto brasileiro. “A superação disso tudo só vai acontecer quando descobrirmos o que é próprio do Brasil. A gente precisa, sim, falar o discurso dos direitos, mas em diálogo com nossa cultura, com nossa forma de ver e estar no mundo”, disse Helena.
Sobre a cultura e a relação entre educação e identificação com o nosso povo, Jéssica Moreira, do coletivo “Nós, mulheres da periferia”, ressaltou a importância de se colocar a questão racial nas discussões. “Trazer a questão do povo negro em uma educação de fato brasileira só pode existir quando meninas e meninos negros estiverem dentro da escola e tiverem acesso educacional suficiente para que não sejamos apenas maioria nos índices carcerários, mas que sejamos maioria nos espaços de poder e de tomada de decisão”.